Crónica de Jorge C Ferreira | Ir à Lua

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira
Ir à Lua

 

“Um Pequeno passo para o homem um grande passo para a humanidade”

Neil Armstrong.

A noite já ia adiantada e nós esperávamos ansiosos a chegada do homem à Lua. A televisão ligada e os nossos olhos despertos. Tínhamos encurtado o caminho da noite. Fomos à Tarantela, depois à Portugália, na Almirante Reis, e daí directos para um rés-do-chão da rua António Pedro. Não me lembro quantos éramos. Sei que íamos dando palpites próprios de jovens de 20 anos. (Muita parvoíce devemos ter dito!) Sim, já foi há 55 anos. Uma vida inteira para muita gente.

Andávamos há algum tempo a discutir esta aventura. Se no dia 20 de Julho de 1969 iríamos assistir a um êxito ou um fracasso. Líamos, víamos e ouvíamos a informação que naquele tempo era possível. O que a censura permitia. Por vezes íamos ouvir o rádio com todas as ondas e ouvíamos outras coisas. Era o tempo da guerra-fria. A paz do medo dos terríficos botões e dos telefones vermelhos. Nós estávamos no tempo das calças à boca de sino e dos cabelos compridos. Um simulacro de Movimento Hippie. A este País tudo chega atrasado.

Tinha chegado, no entanto, o dia e ia haver imagens a preto e branco na televisão. Em muitos lares os serões iriam ser longos. No dia seguinte, este acontecimento, iria ser a conversa em todos os lugares. Cafés, empregos, transportes públicos. Ia haver discussão entre os que acreditavam e os negacionistas da altura. Havia quem achasse que o homem se estava a meter por caminhos proibidos, a palavra blasfémia quase chegava a ecoar em alguns templos. Hoje há negacionistas de tudo. Até do mais óbvio. Tudo alimentado pelas aldrabices vertidas nas redes sociais.

jcferreira livro

Foi durante a espera do grande acontecimento, que me vieram à memória as minhas noites no terraço da minha casa a olhar a Lua. A história do homem do saco que eu conseguia visualizar depois de devidamente sugestionado. Lembrava-me essencialmente das enormes luas cheias em que parecia possível poder tocá-las com a ponta de um dedo. Flashes que muitas vezes me interrompem narrativas. A nossa memória selectiva. A nossa história assim narrada e, muitas vezes, romanceada. Momentos que nos construíram.

De repente estava, de novo, no rés-do-chão da Rua António Pedro com os olhos postos na televisão. As tais imagens a preto e branco. As manhosas imagens que a tecnologia da altura nos permitia ver. A ansiedade continuava. Havia quem apostasse se tal feito seria levado a bom termo.  “-  Aposto dobrado contra singelo”, gritava alguém do canto da sala. O tempo ia passando. Estávamos cada vez mais perto de um momento único.

Pensei: será que alguém irá tocar antes de mim naquela minha adorada Lua de menino perscrutador de sem fins? Acho que, nesse momento, fiquei com inveja de não ser eu a ir naquele módulo espacial.

— É agora! Gritou alguém.

Toda a gente olhou para a mesma imagem. A alunagem a acontecer. A porta do módulo a abrir-se. Umas escadas a caírem. Aldrin a descê-las até ao último salto para o Mar da Tranquilidade. A célebre frase, de que já vi várias versões ou traduções. A colocação da bandeira no solo lunar. Alguns saltos naquele chão que tantas vezes me fez sonhar e o resto é história para escrever e contar.

Soubemos, depois, que tudo correu bem no regresso à Terra. Que vantagens iria ter para a humanidade? Para já continuamos insatisfeitos e em guerras. Esperando novos passos importantes.

«Olha do que te foste lembrar. Eu não vi nada. Não tinha televisão na Ilha do Fogo.»

Fala da Isaurinda.

«Havias de ter gostado de ver.»

Respondi.

«Não sei. Deixa-me continuar a sonhar com a Lua.»

De novo Isaurinda, e vai, balbuciando algo imperceptível.


Jorge C Ferreira Julho/2024(443)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n. 1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor publicou as seguintes obras: A Volta à Vida à Volta do Mundo (Crónicas de Viagem) Editora Poética (2019) Desaguo numa Imensa Sombra (Poesia) Editora Poética (2020) 60 Poemas mais um (Poesia) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.I) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.II) Editora Poética (2024) Participação em Antologias: A Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence (Poesia) Antologia Luso-Francófona Editora Mosaico das Palavras (2018) Poetas do Reencontro (Poesia) Antologia Galaico-Lusa Editora Punto Rojo (2019) A Norte do Futuro (Poesia) Homenagem poética a Paul Celan Editora Poética (2020) Sou Tu Quando Sou Eu Homenagem À Amizade (Poesia) Editora Poética (2021) Água Silêncio e Sede Homenagem Poética a Maria Judite Carvalho (Poesia) Editora Poética (2021) Ser Mulher IV As Palavras (Poesia) Editora Mosaico das Palavras (2021) Nem Sempre Os Pinheiros São Verdes II Editora Poética (2022) Representado na Revista Pauta nº9 com um Poema (2022)

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14 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Ir à Lua”

  1. José Luís Outono

    Por entre os milhentos significados sobre a LUA, trouxeste a palco os olhares superiores a mais de meio século, que penetraram na minha leitura, fazendo recordar-me quando “aterrei” na superfície lunar e gritei – LUA VERDADEIRA – INÉDITO!
    Também “voei em sonhos” de um descobrir de mundos envolventes de mundos.
    Hoje, ainda acredito na presença humana extraterrestre , mas gostaria de ouvir o grito “contágio” de presença fora desta bolinha ligeiramente achatada nos polos.
    Seria tão bom, que os investimentos de cenas guerreiras sem nexo ou verdade de melhoria de vivência, fossem parar às mãos de descobridores deste MUNDO ainda tão incógnito.
    Não é por acaso, que até se fala, ou comenta … que tudo não passou de um mero filme dito verdadeiro, sobre a descoberta do caminho lunar.
    Vamos apenas “saboreando” que Marte tem umas rochas fabulosas … descobertas há pouco, e os “vizinhos” gritam num dialecto longínquo – SOMOS, ESTAMOS e VIVEMOS.
    Parem com as guerras, e ganhem amigos daqui ou além do redondo terrestre, talvez novos sonhos concretizados.
    Grato amigo, pelo teu “desabafar” bem apelativo de leitura !
    Abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado José Luis. Meu Amigo, Poeta. Que bela a viagem que escreveste e que bos convidas a fazer. Temos de encontrar mais irmãos de outros lugares para viver em paz. A minha gratidão. Abraço grande.

  2. Isabel Soares

    Uma crónica a recordar um acontecimento na altura, julgo, impensável. Um feito extraordinário. Pelo facto em si e por todas as expectativas e sonhos de todos que dele tiveram conhecimento, consciência e nele, simbolicamente, depositaram… tanto.
    Fenómenos que devemos esquecer na concretude sociopolítica e cultural do nosso país.
    Creio que é isso que está em causa neste escrito.
    Se o cronista me permitir lanço o desafio dos que não tinham, nem preocupações, curiosidade…
    Havia muita fome. Havia muita pobreza, nas suas várias vertentes. O mesmo povo, mas, parcialmente, outra realidade. Lisboa? Existiria para muitos? Mas o mais importante nesta crónica, o registo do acontecimento, como fenómeno epistemológico e simultaneamente humanista. Este escrito é tenaz ( ou será o seu autor) nas memórias que importam manter vivas.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel, minha Amiga. É tão bom estar aqui de novo. Ler de novo os seus belos comentários. Leu tão bem o que eu escrevi. Há coisas que de tão contraditórias nunca podemos nem devemos esquecer. A minha gratidão. Abraço.

  3. Fernanda gonçalves

    Andava eu completamente na Lua nos meus 23 anos perdidamente e musicalmente apanhada pelo sonho de ir viajar de mini saia a Londres, o que daí a pouco iria concretizar, quando eles pisaram a Lua. Sim. Se eles estavam na Lua, como não podia eu estar em Carnabry street, Hyde Park, Picadilly,etc,etc.Aqui em Lisboa já nós dançávamos ao fim de semana no Pop e Beat Club e outras pistas de dança onde os sapatos deslizavam e as músicas das bandas que alguns traziam lá de fora animavam a malta.A rádio passava na 23ª hora toda a música que depois íamos aprendendo as letras e a festa era feita assim.Mas nessa noite foi demais. Cada grupo se reuniu e festejou a primeira vez que o homem pisou a Lua.Foi um incentivo para todos os povos do Mundo. Todos nos tornámos mais aventureiros. O Mundo mudou nesse dia!
    Obrigada meu amigo por teres recordado. Abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. O POP e o Beat Club. As minis saias e a Carnaby Street de antigamente. Das boites fui frequentador assíduo. O que tu fostes buscar, enqyanto o homem ia à Lua. E tu con tantas luas. A minha imensa gratidão. Abraço

  4. Eulália Coutinho Pereira

    Que bela crônica. Não pude deixar de regressar ao passado e viver essa noite distante de 20 de Julho de 1969. Neil Armstrong era o herói. Ouvia-se de tudo. Grande feito, diziam uns. Estão a ir longe demais, diziam outros.
    Os jovens sonhavam transformar o mundo. Mary Quant impunha-se com a mini saia. Rapazes deixavam crescer o cabelo e ditavam a moda com calças á boca de sino. O país estava a deixar de ser cinzento. Começava a ter cor. O Homem chegava à lua e o mundo nunca mais seria igual.
    No dia seguinte as conversas atropelavam-se. Todos tinham opinião..
    Uns aplaudiam. Outros reticentes.,..foram longe demais.
    Tanto tempo passou, a ambição governa a humanidade e tanto para aprender.
    Que belas memórias me trouxe, Amigo, do tempo em que o sonho não tinha limites.
    Obrigada. Abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Que maravilha de comentário. Tudo escrito num texto assertivo. Adorei tudo. A minha gratidão. Abraço.

  5. Maria Luiza Caetano Caetano

    Uma memória inesquecível, que o escritor nos descreve de forma única. Recorda-nos um feito inacreditável. Embora nessa altura uma maioria, não tivesse acesso suficiente, a notícias, muito menos há televisão, não acreditava neste grande passo para a humanidade.
    Lisboa, sempre privilegiada, embora o cinzento ainda fosse bastante acentuado. Li com atenção, o que tão bem diz e sabe. Vi um filme. Estávamos a 20 de Julho de 1969 e todos ansiávamos pela noite, em que o homem iria entrar no espaço lunar, de verdade! E assim foi. Nem sabia o que dizer deste momento histórico. Que maravilhosamente nos recordou, querido escritor. Quero dizer-lhe, que é fortíssima a minha ligação com a lua. Visita-me muitas vezes, olho-a através da vidraça, que tenho no meu cantinho. Deixa-me sempre uma mensagem, sabe que a adoro e me encanto com o seu brilho.
    Sempre grata, querido escritor adorei o reencontro deste momento memorável.
    Abraço grande.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, Maria Luiza, minha Amiga. Que bom e inteligente o seu comentário. Toca tofos os pontos importantes do meu texto. Uma maravilha. A minha imensa gratidão. Abraço grande

  6. Claudina silva

    Crónica fabulosa que nos fez viajar no tempo. Noite mágica junto dos velhos amigos. Adoro a Lua em todas as suas fazes. Obrigada Poeta pela ternura destes momentos.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Claudina, minha Amiga de muitos anos. Obrigado pot estares aqui. A Lua é uma inspiração. Muito grato. Abraço

  7. Regina Conde

    A noite não acontecia, a expectativa era imensa. A exaltação sem entender o que via. Como se vivessemos numa cápsula, lembro agora a tantos de distância da noite que fez história. Foi tema de conversa de todas as horas. Os mais novos sonhavam em viajar ao espaço, os antigos desconfiavam da veracidade do que viam. A evolução dos tempos. A sensação de que aconteceu há muito mais tempo. Gosto muito da tua crónica viva. Continua a transportar-nos no tempo, a terra à volta do sol e nós fazemos o percurso de vida. Que bom olharmos a lua e as estrelas em brilhantes constelações. Abraço meu Amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina, minha Amiga de muitos anos. Que bom estares aqui com a tua irreverência. Que bonito o nome como nos contaste esse dia especial. A minha gratidão. Abraço grande

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